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Souls & Zeitgeist
Pilar Parcerisas (2013)
A fotografia como registro de uma experiência
humana. Esse seria quiçá o motivo que move a câmera
fotográfica de Emanuel Pimenta, ainda hoje, desde os quinze
anos de idade quando realizou intencionalmente o seu primeiro
retrato. Colecionar almas, espíritos, energias concentradas
num rosto é quase um ato notarial de vida.
Emanuel Pimenta conta que nas origens de Souls está a
fotografia que fez de um ancião japonês, cujo rosto
desprendia sofrimento e vicissitudes de uma vida transcorrida
na pobreza. O avô de Pimenta tinha uma pequena propriedade
nos arredores de São Paulo e próxima de onde vivia
a família japonesa; como vizinho os ajudava frequentemente,
os salvava de algum apuro e se estabeleceu entre eles uma amizade.
Emanuel se perguntava o que teria sucedido na vida do ancião
japonês para possuir aquele rosto sulcado pelos avatares
do tempo e a luta pela vida. Um dia lhe propôs realizar
uma fotografia do seu rosto, e aquele foi o primeiro e único
retrato que teve em vida o ancião japonês. Quando
morreu o avô de Emanuel, a avó continuou ajudando
o velho japonês e a sua família, e a sua personalidade
forte e decidida também formou parte desse início
de Souls.
A partir de então, Emanuel Pimenta imaginou um projeto
fotográfico que conectasse pessoas de diversas culturas
em lugares distintos do mundo: artistas, cientistas, empresários,
filósofos, arquitetos, advogados, músicos, antropólogos
,
todos formando uma constelação que teria como eixo
comum o Zeitgeist, o espírito do tempo. Souls é
ao mesmo tempo um álbum que ilustra múltiplos encontros
de Pimenta com as pessoas do mundo, que deixaram a sua marca
em seu entorno e nos parâmetros artísticos e culturais,
e que olharam o mundo com alma criativa e generosamente humana.
Mas, nos enganaríamos se interpretássemos este
álbum Souls, que já se converteu num work in progress
sem fim, como uma busca de fazer retratos artísticos.
Sua intenção segue unida ao transcurso da vida
e da experiência. O que deu continuidade a esses inícios
foram os concertos que Emanuel ia, especialmente os de Hermeto
Pascoal, músico que exerceu uma influência importante
na sua vida. Tocava com Miles Davis e com Cannonball Adderley,
e seus concertos duravam até altas horas da madrugada.
Emanuel realizava as fotografias dos concertos nos palcos, e
chegando ao amanhecer, partilhavam o café da manhã
com todos os que resistiam até ao final.
A cumplicidade com os músicos, com os atores nesses concertos,
formava parte desses retratos, que têm impregnado no seu
rosto a marca do seu tempo. Como um espelho, Emanuel Pimenta
realizou esses retratos, que também são espelho
do seu tempo.
A fotografia tem algo de misterioso, o que apesar de estar dentro
da fotografia que estamos vendo, não se pode ver, apenas
intuir. Nos seus inícios, foi repudiada porque na concepção
católica a pessoa estava feita à imagem e semelhança
de Deus, e a imagem de Deus não podia ser fixada por nenhuma
máquina humana. Quiçá Walter Benjamin, na
sua Pequena História da Fotografia, resgata esse mistério
com o conceito de "inconsciente óptico", tão
presente nos retratos de Souls, um ensaio fotográfico
que não pretende levar a cabo uma galeria de retratos
ilustres da cultura ocidental, mas sim um registro de humanidades:
captar a "aura" do personagem nesses rostos que cruzaram
a vida de Emanuel Pimenta e que compartilham um sentido do tempo.
Essa é também a "aura", o aqui e agora
de um presente de vida, também feita pela fotografia,
que é uma ferramenta destrutiva da "aura" de
acordo com Benjamin, porque traz a arte para as massas através
da reprodução, com a sabida perda de "aura"
que a envolve.
Todavia, ao mesmo tempo, o projeto não inclui apenas "almas"
de ilustres personagens, mas também de seres anônimos,
como fez David Octavius Hill para ter modelos para pintar o afresco
do primeiro sínodo da Igreja escocesa em 1843. Apenas
diríamos que não há qualquer separação
entre o tratamento que Emanuel Pimenta faz dos rostos conhecidos
e os seres anônimos que formam parte de Souls.
A filosofia Zen que acompanha o percurso vital de Pimenta conduz
esse work in progress de forma que as imagens se transformam
em tempo. Soma de instantes que se referem a personagens, mas
também a momentos de vida vividos na arte e na cultura.
Homens e mulheres do século XX, de diferentes lugares
e culturas, que levam no seu rosto a marca do século,
do tempo, de uma cultura e forma de viver no Ocidente. Trata-se,
melhor dizendo, de uma constelação de "auras"
que construíram história, com ou sem nome.
Dentro desta constelação, destaca-se por sua paixão
e dedicação incombustível à arte
e à cultura Lucrezia De Domizio Durini, a quem o autor
quer render homenagem nos quarenta anos da experiência
que recolhe Souls e a quem dedica este livro. Lucrezia De Domizio,
avis rara do mundo cultural e incansável difusora do pensamento
de Joseph Beuys, tem sido um farol na vida artística de
Emanuel Pimenta desde 1990, data do seu encontro em Milão.
O tempo do progresso, a velocidade do presente, a precisão
na organização de eventos e a paixão pelo
trabalho constante sem descanso e sem vagar, representa parte
da alma do Ocidente. Para Emanuel Pimenta, Lucrezia forma parte
da sua família cultural em primeira linha, dado o seu
sentido de liberdade e de independência em relação
às figuras da cultura artística, como Harald Szeemann
ou Pierre Restany, cúmplices de muitas das suas aventuras
culturais, ao lado de Buby Durini, desaparecido em 1994, cuja
proximidade ao mundo científico atuava em contracampo
ao cientifismo de Joseph Beuys. Lucrezia e Buby empreenderam
uma aventura pela arte e pela cultura que ainda hoje dá
frutos. Muitas "almas" passaram por essas iniciativas
culturais, hoje espelho de uma história recente, que Lucrezia
De Domizio Durini recolheu em suas memórias e livro de
ensaio Perche. Le Sfide di una Donna Oltre l'Arte.
A história da Humanidade é coletiva e nosso tempo
não é uma exceção. No universo criativo
de Emanuel Pimenta esses rostos convertidos em imagens passaram
a ser rastros do tempo, memória de um presente ainda vigente,
ainda não esgotado por um progresso que parece não
ter fim. O colecionador, disse Benjamin, é um "fisionomista
do mundo das coisas"; da mesma forma, Emanuel Pimenta coleciona
essas fisionomias que olham o mundo a partir do "seu mundo",
como o velho japonês, cujo rosto era o espelho da vida
que lhe havia feito viver, construindo, a partir da pobreza e
do anonimato, a história da Humanidade.
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