O HOMEM GAFANHOTO Emanuel Dimas de Melo Pimenta 2017 introdução voltar ao site
Ambientes
não são apenas contentores, mas processos que mudam
totalmente o conteúdo.
Marshall McLuhan
Quando estamos imersos
num ambiente, não temos consciência dele. Tornamo-nos
no ambiente, e ele pode ser o nosso vestuário, as nossas
cidades, os nossos artefatos. Embora possa observar de tempos
em tempos, ninguém "pensa" na roupa que está
vestindo, no automóvel que está dirigindo ou no
edifício em que está.
Isso pode ser chamado de "cultura" ou de "meio".
T. S. Hall. preferia a expressão "ambiente".
Quando tal acontece, tudo nos parece natural, invisível.
Dentro de um ambiente as nossas estruturas neuronais mudam, as
nossas mentes são transformadas.
É a nossa vida quotidiana. E estamos imersos nela.
Por isso, é popularmente dito que quando estamos muito
próximos de um problema, não somos capazes de o
perceber; mas, uma pessoa que está mais distante pode distinguir
aquilo que é invisível para nós.
De acordo com um antigo pensamento Védico, apenas a diferença
produz a consciência.
Marshall McLuhan dizia, com toda a razão, que um novo
meio tende a criar um novo ambiente, que funciona contra o ambiente
em que estamos imersos, ou seja, é anti-ambiental, gerando
novas funções e nos tornando conscientes de uma
parte da realidade.
Se a interiorização produzida pelo alfabeto fonético
e o papel numa sociedade literária projetou o "destaque"
da realidade gerando a percepção da figura e fundo;
o mesmo não acontece com a cultura eletrônica - como
sublinhava o próprio McLuhan quando dizia que o circuito
elétrico "envolve em profundidade. Ele funde o indivíduo
e o ambiente de massa".
Esse é um dos elementos centrais deste livro, senão
o principal.
Tal falta de capacidade em perceber algo em que estamos imersos
acontece porque não somos fechados.
Somos continuamente formados, em termos mentais e biológicos,
por tudo aquilo em que participamos, pelo mundo "que nos
rodeia". Aliás, o mundo não nos rodeia. Somos
o mundo. Somos o planeta Terra. Por outro lado, não há
grande diferença entre o biológico e o mental.
Tudo é processo.
Da mesma forma que uma fabulosa quantidade de bactérias
- seres com genética não-humana - constitui uma
grande parte dos nossos organismos, produzindo até mesmo
boa parte dos nossos neurotransmissores; o mesmo acontece com
as nossas idéias.
Idéias e organismo não são coisas isoladas
- pertencem a um complexo quadro que nos faz lembrar John Archibald
Wheeler quando afirmava: it from bit.
Assim, surge a questão: se tal é verdade, muito
daquilo em que acreditamos é desenhado pelos nossos próprios
artefatos, por aquilo que produzimos, mesmo em termos fisiológicos.
Estado de Direito, liberdade e privacidade entre outros dos chamados
"valores humanos" são condições
lógicas de um ambiente em que estamos submersos e que,
portanto, nos é imperceptível. Quando mudamos o
ambiente, mudamos imediatamente essas condições
lógicas.
Quais são as vias através das quais desenhamos
esse ambiente - que não percebemos - como ele se transforma
continuamente e como ele nos altera fisiologicamente, é
a base das observações que constróem este
livro.
Um dos aspectos mais instigantes nessa viagem para a qual convido
o leitor a fazer comigo, estará na identificação
das origens do impulso criminoso - no seu sentido mais amplo.
E, dado que trabalhamos com sentidos e cognição,
trata-se de uma questão estética: daquilo que percebemos
e que construímos enquanto pensamento.
Como é fácil prever, o livro acaba por tocar em
questões políticas, o que é inevitável.
Mas em nenhum momento há julgamentos de valor e jamais
se trata de política partidária. Assim, alguns dos
mais importantes personagens da política internacional
na passagem do século XX ao XXI são referidos -
sempre com o objetivo de iluminar as questões estabelecidas
no texto. Quando o polêmico Donald Trump foi eleito presidente
dos Estados Unidos no final de 2016, este livro já estava
concluído. Assim, as referências a ele são
poucas.
Este livro faz parte de
um trabalho mais extenso, iniciado em 1992, que inclui dois outros
livros: Teleantropos, publicado em 1999, e Sociedade Low Power,
publicado entre 2003 e 2010.
Os três livros são um único trabalho sobre
as transformações planetárias na transição
de uma cultura literária para o universo eletrônico.
Teleantropos é um conceito cunhado pelo filósofo
suíço René Berger, no início dos anos
1990, com quem trabalhei ao longo de mais de vinte anos e que
foi um dos meus melhores amigos. Trata-se do ser humano contemporâneo
feito à distância: aquilo que comemos, as roupas
que vestimos, aquilo que conhecemos não mais pertencem
a um quadro específico de espaço-tempo, de um território
ou de um determinado momento histórico. O livro Teleantropos
- escrito entre 1992 e 1999 - foi dedicado a René Berger
e contou com um texto introdutório de Lucrezia De Domizio,
a legendária Baronesa Durini, outra querida amiga.
Sociedade Low Power é um livro com um diferente método
de elaboração. Ele foi originalmente lançado
na forma eletrônica em 2003, e foi sendo permanentemente
re-elaborado ao longo dos sete anos seguintes, tendo tido uma
edição eletrônica mais estável em 2008
e a sua publicação em papel, numa versão
a princípio definitiva, no ano de 2010. O livro Sociedade
Low Power contou com um texto introdutório do célebre
jornalista americano Jon Rappoport; um texto e uma imagem da artista
brasileira Márcia Grostein, e um prefácio do jornalista
econômico Corrado Bianchi Porro, de Lugano, Suíça.
Esse livro, dedicado a Giorgio Alberti, um especialista em arte
e alquimia, trata a questão da energia, do poder, das suas
metamorfoses.
Finalmente, O Homem Gafanhoto - escrito entre 2010 e 2017 - lida
especificamente com ambientes, tomado no sentido cognitivo do
termo, envolvendo mais profundamente alguns elementos das chamadas
neurociências. Desta vez, por se tratar da conclusão
de um longo trabalho iniciado em 1992, constituído por
três livros, decidi que este não deveria contar com
qualquer texto introdutório para além do meu próprio.
Curiosamente, por pura coincidência, cada um dos livros
tomou sete anos de estudos e pesquisas; totalizando vinte e um
anos.
Num certo sentido, podemos considerar que os três seguem
os princípios fundadores da Teoria Geral dos Signos do
genial filósofo Charles Sanders Peirce.
O primeiro livro da tríade lida, em termos conceituais,
com uma relação de existência com o seu objeto:
o ser humano feito à distância; o segundo, com uma
relação de qualidade: a energia, o poder; e o terceiro
lida com a teoria, a razão, uma terceiridade.
Pode-se ter a impressão, principalmente neste livro -
O Homem Gafanhoto - de que se trata de uma crítica negativa
ao universo tecnológico em que vivemos no início
do século XXI.
Não é isso o que ocorre.
Desde os anos 1970 desenvolvo projetos em Realidade Virtual;
em 1980 cunhei o conceito de "arquitetura virtual" e
dei início ao primeiro planeta virtual da história;
participei da apresentação da World Wide Web no
início dos anos 1990, através da EPFL no contexto
do Festival de Vídeo Arte e Arte Eletrônica de Locarno,
com Tim Berners-Lee e Robert Cailliau; participei daquela que
é considerada a primeira transmissão de televisão
pela Internet também no início dos anos 1990, com
René Berger, Philippe Quéau e Bernard Allien; e
desde o ano 2000 tenho desenvolvido projetos de arquitetura espacial,
para ambientes fora do planeta Terra, entre muitos outros projetos.
Assim, durante toda a minha vida, tenho estado sempre profundamente
ligado aos universos da arte, da ciência de da tecnologia.
Mas, apesar de tudo isso, é sempre fundamental questionar
e procurar pela descoberta.
Como em alguns dos meus outros trabalhos, este livro trata de
uma análise sobre a formação e metamorfose
do ser humano. E ele não teria sido possível sem
a cultura eletrônica, sem a Internet, sem os computadores
e as redes. Para a sua elaboração, ao longo do período
de sete anos, foram estudados algumas centenas de livros, várias
dezenas de artigos científicos, e mais de três mil
artigos jornalísticos publicados em diversos países.
Não apenas, seu processo de elaboração e
publicação, profundamente eletrônico, impossível
poucos anos antes, estabelece uma nova relação entre
autor e leitor, uma nova intimidade - com novos meios mudando
a natureza de um antigo meio.
De fato, trata-se fundamentalmente de um trabalho de meta-análise.
Uma reflexão sobre o mundo utilizando seus próprios
fragmentos, como uma espécie de arqueologia imaterial contemporânea.
Essa é a natureza das redes e, assim, trata-se de um processo
metalinguístico.
O livro é dividido em doze capítulos. Cada capítulo
tem um tema subjacente, uma idéia central, que não
é diretamente revelada ao leitor. É deixado a ele
descobrir essas idéias escondidas geradoras do desenvolvimento
do texto.
Era importante estabelecer um processo de unidade na elaboração
do texto. Assim, optei por distribuir algumas idéias que
são repetidas em diferentes capítulos - um desenho
de texto que algumas vezes produz uma sensação de
déjà vu. Trata-se de outra referência metalinguística
à rede - onde a informação se distribui por
coordenação.
Em outras palavras - enquanto que os dois primeiros capítulos
estabelecem os elementos conceituais basilares do livro, cada
um dos capítulos seguintes possui uma idéia interna,
e cruzando em vários deles, cinco ou seis idéias
vão emergindo em diversos momentos, em contextos diferentes,
gerando unidade, alguma redundância e por vezes supresa.
Num certo sentido, tal como acontece numa composição
musical.
É um texto de não-ficção que parece
revelar o mundo como ficção, invertendo a natureza
da literatura, parecendo, por vezes, resgatar os princípios
essenciais do surrealismo.
Para além dos livros,
filmes e artigos científicos, o processo de meta-análise
se baseou intensamente no estudo atento de jornais e revistas.
Em 2008, o jornalista Gilbert Cruz, da Time, dizia: "A indústria
dos jornais está num momento ruim. Na verdade, fazendo
uma correção nessa declaração - os
jornais estão num 'momento de pânico'. O modelo de
negócio está entrando em colapso, o dinheiro dos
anúncios está desaparecendo, os preços do
papel de jornal estão num máximo de doze anos e
a Internet está dando notícias de graça.
No dia dois de julho, o Los Angeles Times anunciou que estava
cortando mais de um sexto da sua equipe de redação;
o Tampa Tribune informou que reduziria 20%". Cruz fazia ainda
uma particular referência ao jornalista Paul Steiger, para
quem a distribuição de conteúdos gratuitos
nas redes "é muito parecido com o que está
acontecendo com a música... um colapso total do modelo
de negócio".
Em geral, as pessoas não pensam que jornalistas e músicos
têm de ganhar dinheiro para poder trabalhar - eles precisam
comer! E muitas vezes pensam que tudo deveria ser grátis;
vêm os músicos como estrelas da música popular
- que, na melhor das hipóteses, não representam
mais que 0,01% do universo dos músicos; e tomam como referência
famosos jornalistas que apresentam programas de televisão.
O fim do "modelo de negócio" significa a eliminação
de milhões de músicos e jornalistas sérios.
E, curiosamente, as pessoas parecem não perceber que querem
tudo grátis porque há cada vez menos dinheiro no
planeta.
Mas, em todo o mundo ocidental o papel exercido pelo jornalismo,
especialmente de investigação, foi fundamental para
a manutenção do Estado de Direito, da defesa dos
direitos individuais, da luta pelos valores democráticos.
Um eventual desaparecimento do jornalismo sério significará
o mergulho nas trevas num universo medieval, onde a credibilidade
das idéias dará lugar a todo o tipo de manipulação,
de fraude.
Este livro á, ainda, um manifesto recordando o espírito
de I. F. Stone, para quem "nenhuma sociedade é boa
e pode ser saudável sem liberdade para a discordância
e para a independência criativa".
De uma certa forma, nasci num mundo jornalístico. Um dos
sonhos do meu avô, quando jovem, era ser jornalista. Meu
pai criou e dirigiu uma revista ao longo de mais de trinta e cinco
anos. Muito novo, ainda adolescente, comecei a trabalhar com o
legendário jornalista e poeta brasileiro Jorge Medauar,
que seria meu grande amigo para toda a vida. Especialmente quando
vivia no Brasil, escrevia regularmente artigos para jornais e
revistas, como O Estado de São Paulo, Folha de São
Paulo ou a revista de arquitetura e urbanismo Projeto, por exemplo.
Creio que escrevi artigos para quase todas as edições
da revista de música Som Três, criada por outro querido
amigo, o jornalista Maurício Kubrusly. Convivi e colaborei
com muitos outros jornalistas, como Maurício Kus ou Efigênia
Menna Barreto, que também se tornaram amigos para sempre.
Passados mais de quarenta anos, até hoje tenho queridos
amigos jornalistas, em diversos países - e tenho consciência
do seu importante papel na sociedade contemporânea.
Assim, num certo sentido, este livro é uma homenagem a
esse universo ameaçado de extinção: o mundo
do jornalismo.
Ainda, convém sublinhar
que as críticas que por vezes são feitas em relação
a este ou àquele país, têm como único
objetivo iluminar o processo de transformação em
que vivemos.
O Homem Gafanhoto é dedicado a todos os espíritos
que amam e defendem ativamente o conhecimento, a descoberta, a
educação e as liberdades individuais.
Ele é publicado em memória de três queridos
amigos, que morreram demasiadamente cedo e com quem conversei
sobre O Homem Gafanhoto. Ana Teixeira da Silva, brilhante juíza
em Portugal; Wilton Azevedo, grande artista e pensador, que vivia
em São Paulo; e José Mariano Gago, homem da ciência
e da literatura, também em Portugal. Os três desapareceram
repentinamente. Em ocasiões e lugares diferentes, mergulhávamos
em apaixonadas discussões sobre o planeta Terra e a condição
humana.
A compreensão de
alguns dos principais mecanismos da formação das
idéias não é justificação,
de qualquer tipo, nem mesmo histórica, para crimes, ditaduras
ou quaisquer tipos de tirania, mas exatamente o contrário.
Este livro é um grito absoluto e radical contra qualquer
impulso no sentido da eugenia - aliás, ele demonstra com
clareza a eugenia, a tirania, a ditadura, o racismo e o totalitarismo,
de qualquer tipo, como farsas com o objetivo de ocultar o roubo
e a exploração humana.
Não apenas, ele mostra a importância essencial da
cultura, da educação, da formação
do ser humano.
Mesmo ao nível fisiológico, aquilo que conhecemos
é desenhado pela cultura, pelos nossos artefatos, visíveis
ou não,, pela forma de conhecer.
A cultura é plástica e física.
Redesenhamos continuamente os nossos cérebros, cuja dinâmica
plasticidade nos esclarece sobre a importância de todas
as elaborações como formadores do espírito
humano.
Não há conflitos de raça ou religiosos -
o que há é cultura.
Uma das conclusões
é a de que única saída para o mundo é
um consenso em relação a um pacto estabelecendo
a educação de alta qualidade em longo termo - história,
matemática, literatura, filosofia, arte, música,
arquitetura, ciências, física, química, biologia
etc. - como prioridade absoluta.
Apenas com instrumentos essenciais para se compreender livremente
as relações de espaço-tempo poderemos, cada
um de nós, elaborar livremente o futuro.
Outra das conclusões é a de que ainda que as tecnologias
de hoje pareçam projetar um determinado cenário,
é importante sublinhar que elas estão sempre em
permanente transformação.
A tecnologia - como filha da ciência, cujo signo primeiro
é o princípio da refutabilidade - trás em
si a matriz genética dessa metamorfose.
O importante é questionar, sempre.
Dwight D. Eisenhower dizia: "Se você quer segurança
total, vá para a prisão, lá você é
alimentado, vestido, terá cuidados médicos e assim
por diante. A única coisa que faltará... é
a liberdade".
Assim, este é, de fato, um livro sobre a liberdade.
Emanuel Dimas de Melo
Pimenta
Locarno, Suíça, 2017